quarta-feira, 21 de maio de 2014

Tragédia e comédia [por Joseph Campbell]




"Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua  maneira." Com essas fatídicas palavras, o conde Liev Tolstói iniciou o romance do desmembramento espiritual de sua moderna heroína, Ana Karênina. Nas sete décadas que se passaram desde que essa esposa, mãe e mulher cegamente apaixonada se atirou, em sua desgraça, sob as rodas de um trem — terminando assim, com um gesto que simbolizava o que já havia acontecido ao seu espírito, sua tragédia de desorientação —, um tumultuoso e interminável ditirambo de romances, reportagens e gritos não registrados de angústia vem sendo construído em louvor ao touro-demônio do labirinto: o aspecto irascível, destruidor e enlouquecedor do mesmo deus que, quando benigno, constitui o princípio vivíficador do mundo. O romance moderno, tal como a tragédia grega, celebra o mistério do desmembramento, que se configura como vida no tempo. O final feliz é desprezado, com justa razão, como uma falsa representação; pois o mundo — tal como o conhecemos e o temos encarado — produz apenas um final: morte, desintegração, desmembramento e crucifixão do nosso coração com a passagem das formas que amamos. 

"A piedade é o sentimento que toma conta da mente na presença de tudo o que é grave e constante nos sofrimentos humanos e que a une ao sofredor humano. O terror é o sentimento que toma conta da mente na presença de tudo o que é grave e constante nos sofrimentos humanos e que a une à causa secreta." [1] Como afirmou Gilbert Murray em seu prefácio à tradução da Poética de Aristóteles, feita por Ingram Bywater [2], a katharsis trágica (isto é, a "purificação" ou "purgação" das emoções do espectador da tragédia através da experiência de piedade e terror) corresponde a uma katharsis ritual anterior ("uma purificação da comunidade das contaminações e venenos do ano anterior, do velho contágio do pecado e da morte"), que era a função do festival e da representação de mistérios do touro-deus desmembrado, Dioniso. A mente meditativa está unida, na representação de mistérios, não com o corpo cuja morte é apresentada, mas com o princípio de vida contínua que por algum tempo o habitou e que, durante esse tempo, foi a realidade revestida na aparência (a um só tempo, sofredor e causa secreta), o substrato em que o nosso eu se dissolve quando a "tragédia que desfigura a face do homem" [3] despedaça, esmaga e dissolve nossa capa mortal. 

"Aparecei, aparecei, qualquer que seja vossa forma ou nome, Ó Touro da Montanha, Serpente das Cem Cabeças, Leão da Chama Abrasadora! Ó Deus, Fera, Mistério, Vinde!" [4]

Essa morte à lógica e aos compromissos emocionais do fugaz momento em que estamos no mundo do espaço e do tempo, esse reconhecimento e essa mudança da nossa ênfase para a vida universal que palpita e celebra sua vitória no próprio beijo da nossa aniquilação, esse amor fati ("amor ao destino"), que é inevitavelmente a morte, constitui a experiência da arte trágica; aí reside o prazer que ela traz, seu êxtase redentor: "Meu tempo passou, o servo, eu Iniciado de Júpiter Ideu; Onde os Zagreus da meia-noite erram, eu erro; Eu suportei seu grito tempestuoso; Frequentei seus festins rubros e sangrentos; Segurei a chama da montanha da Grande Mãe; Eu sou Liberto e chamado por nome Um Baco dos Poderosos Sacerdotes" [5]

A literatura moderna se dedica, em larga medida, à observação corajosa e atenta das imagens enjoativamente fragmentadas que abundam diante de nós, ao nosso redor e em nosso interior. Onde o impulso natural de queixa contra o holocausto foi suprimido — de vociferar culpas ou de anunciar panacéias —, a magnitude de uma arte trágica mais potente (para nós) que a grega encontra sua realização: a realista, íntima e variadamente interessante tragédia da democracia, em que o deus é visto crucificado nas catástrofes, não apenas das grandes casas, mas de toda casa comum, de toda face lacerada e flagelada. E não há ilusão a respeito do céu, da futura felicidade e da compensação capaz de aliviar o amargo poder supremo, mas apenas a mais negra escuridão, o vazio da não realização, para receber e devorar as vidas que foram atiradas fora do útero somente para fracassarem. 

Comparadas a isso, nossas pequeninas histórias de realização se afiguram dignas de pena. Conhecemos bem demais o amargor do fracasso, da perda, da desilusão e da não-realização irônica que corre até mesmo nas veias daqueles que o mundo inveja! Daí por que não estamos dispostos a atribuir à comédia o alto posto da tragédia. A comédia como sátira é aceitável. Como brincadeira, é um agradável paraíso de fuga. Mas o conto de fadas do "e foram felizes para sempre" não pode ser levado a sério; ele pertence à Terra do Nunca da infância, que se encontra protegida das realidades que se tornarão terrivelmente conhecidas dentro em pouco. Da mesma forma, o mito da eternidade celeste pertence aos velhos, que deixaram a vida para trás e cujo coração deve ser preparado para a última passagem da jornada que leva à noite. O sóbrio e moderno julgamento ocidental tem como base uma total falta de compreensão das realidades descritas no conto de fadas, no mito e nas divinas comédias de redenção. Essas formas, no mundo antigo, eram consideradas de natureza mais elevada que a tragédia, manifestações de uma verdade mais profunda, de percepção mais difícil, de estrutura mais sólida e de revelação mais completa. 

O final feliz do conto de fadas, do mito e da divina comédia do espírito deve ser lido, não como uma contradição, mas como transcendência da tragédia universal do homem. O mundo objetivo permanece o que era; mas, graças a uma mudança de ênfase que se processa no interior do sujeito, é encarado como se tivesse sofrido uma transformação. Onde antes lutavam a vida e a morte, agora se manifesta o ser duradouro — tão indiferente aos acasos do tempo como a água fervente num pote o é para com o destino de uma bolha, ou como o cosmos com relação ao aparecimento e desaparecimento de uma galáxia. A tragédia é a destruição das formas e do nosso apego às formas; a comédia, a alegria inexaurível, selvagem e descuidada, da vida invencível. Em conseqüência, tragédia e comédia são termos de um único tema e de uma única experiência mitológicos, que as incluem e que são por elas limitados: a queda e a ascensão (kathodos e anodos), que juntas constituem a totalidade da revelação que é a vida, e que o indivíduo deve conhecer e amar se deseja ser purgado (katharsis = purgatório) do contágio do pecado (desobediência à vontade divina) e da morte (identificação com a forma mortal).

"Tudo está em mudança; nada morre. O espírito vagueia, ora está aqui, ora ali, e ocupa o recipiente que lhe agradar. . . Pois o que existiu já não é, e o que não existiu começou a ser; e assim todo ciclo de movimento se reinicia." [6] "Apenas os corpos, em que habita o eterno, imperecível, incompreensível Eu, perecem." [7]

É próprio da mitologia, assim como do conto de fadas, revelar os perigos e técnicas específicos do sombrio caminho interior que leva da tragédia à comédia. Por conseguinte, os incidentes são fantásticos e "irreais": representam triunfos de natureza psicológica e não de natureza física. Mesmo quando a lenda se refere a uma personagem histórica real, as realidades da vitória são representadas, não em figurações da vida real, mas em figurações oníricas. Pois a questão não está no fato de tal e tal coisa ter sido realizada na terra. A questão é que, antes de ela poder ser feita na terra, uma outra coisa, mais importante e essencial, teve de passar pelo labirinto que todos conhecemos e visitar nossos sonhos. Por vezes, a passagem do herói mitológico pode ser por cima da terra; fundamentalmente, é uma passagem para dentro — para as camadas profundas em que são superadas obscuras resistências e onde forças esquecidas, há muito perdidas, são revitalizadas, a fim de que se tornem disponíveis para a tarefa de transfiguração do mundo. Cumprida essa etapa, a vida já não sofre sem esperança sob o peso das terríveis mutilações do desastre absoluto, esmagada pelo tempo, terrível ao longo do espaço; mas, com o seu horror ainda visível e seus gritos aflitos ainda tumultuados, ela se torna penetrada por um amor que a tudo abarca e a tudo sustem e por um conhecimento do seu próprio poder não conquistado. Uma parcela do lume que arde invisivelmente nos abismos de sua materialidade normalmente opaca irrompe, com um distúrbio crescente. Assim, as horrorosas mutilações são vistas, tão-somente, como sombras de uma eternidade imanente e imperecível; o tempo se rende à glória, e o mundo canta com o prodigioso e angelical — mas talvez, no final das contas, monótono — canto da sereia das esferas. Tal como as famílias felizes, os mitos e os mundos redimidos se parecem entre si. 


1. James Joyce, A portrait of the artist as a young man, The Modem Library, Random House, Inc., p. 239. 
2. Aristóteles, Arte poética, tradução de Ingram Bywater, com prefácio de Gilbert Murray, Oxford University Press, 1920, pp. 14-16. 
3. Robinson Jeffers, Roan Stallion, Nova York, Horace Liveright, 1925, p. 20. 
4. Eurípides, Bacchae, 1017 (tradução de Gilbert Murray). 
5, Eurípides, The Cretans, frag. 475, apud Porfírio, De abstinentia, IV, 19, tradução de Gilbert Murray. Veja-se a discussão desses versos feita por Jane Harrison em Prolegomena to a study of Greek reli-glon, 3ª edição, Cambridge University Press, 1922, pp. 478-500. 
6, Ovídio, Metamorfoses, XV, 165-167; 184-185 (tradução de Frank Justus Miller), Loeb Classical Library. 
7. Bhagavad-gita, 2:18 (tradução de Swami Nikhilananda) Nova York, 1944.