sábado, 1 de fevereiro de 2014

Mito, modelo exemplar. [ por Mircea Eliade]





O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que
teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale
a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são
deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o
homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é pois a
história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os
Seres divinos fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se
passou ab origine. Uma vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade
apodítica: funda a verdade absoluta. “É assim porque foi dito que é assim”, declaram
os esquimós netsilik a fim de justificar a validade de sua história sagrada e suas
tradições religiosas. O mito proclama a aparição de uma nova “situação” cósmica ou
de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma “criação”:
conta se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser É por isso que o mito é
solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, do que se
manifestou plenamente.
É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por
excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que
o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar.
Conforme não tardaremos a ver, o trabalho agrícola é um ritual revelado pelos
deuses ou pelos Heróis civilizadores. É por isso que constitui um ato real e
significativo. Por sua vez, o trabalho agrícola numa sociedade dessacralizada tornou-se
um ato profano, justificado unicamente pelo proveito econômico que proporciona.
Trabalha se a terra com o objetivo de explorá-la: procura-se o ganho e a
alimentação. Destituído de simbolismo religioso, o trabalho agrícola torna-se, ao
mesmo tempo, “opaco” e extenuante: não revela significado algum, não permite
nenhuma “abertura” para o universal, para o mundo do espírito. Nenhum deus,
nenhum herói civilizador jamais revelou um ato profano. Tudo quanto os deuses ou
os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua
atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por conseqüência, participa do
Ser. Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem
sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é pois uma atividade vã e ilusória,
enfim, irreal. Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos
exemplares para seus comportamentos e ações. Em outras palavras, quanto mais é
religioso tanto mais se insere no real e menos se arrisca a perder se em ações não
exemplares, “subjetivas” e, em resumo, aberrantes.
Este é um aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacralidade
absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da
obra deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas
irrupções do sagrado do mundo. Por esta razão, entre muitos primitivos, os mitos
não podem ser recitados indiferentemente em qualquer lugar e época, mas apenas
durante as estações ritualmente mais ricas (outono, inverno) ou no intervalo das
cerimônias religiosas – numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do
sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Cada
mito mostra como uma realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o
Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição
humana. Narrando como vieram à existência as coisas, o homens explica as e
responde indiretamente a uma outra questão: por que elas vieram à existência? O
“por que” insere se sempre no “como”. E isto pela simples razão de que, ao se contar
Como uma coisa nasceu, revela se a irrupção do sagrado no inundo, causa última de
toda existência real.
Por outro lado, sendo toda criação uma obra divina, e portanto irrupção do sagrado,
representa igualmente uma irrupção de energia criadora no Mundo. Toda criação
brota de uma plenitude. Os deuses criam por um excesso de poder, por um
transbordar de energia. A criação faz se por uni acréscimo de substância ontológica.
É por isso que o mito que conta essa ontofania sagrada, a manifestação vitoriosa de
uma plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas:
só ele revela o real, o superabundante, o eficaz. “Devemos fazer o que os deuses
fizeram no começo”, afirma um texto indiano (Shatapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 4). –
Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens”, acrescenta Taittiriya Br. (1, 5, 9,
4). A função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos exemplares de
todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação,
sexualidade, trabalho, educação etc. Comportando se como ser humano plenamente
responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles,
quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma
atividade social, econômica, cultural, militar etc.
Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas viagens pelo mar, fornecendo
assim “modelos aos navegadores atuais”, bem como modelos para todas as outras
atividades, “quer se trate de amor, de guerra, de pesca, de produção de chuva, ou do
que for... A narração fornece precedentes para os diferentes momentos da construção
de um barco, para os tabus sexuais que ela implica etc.” Um capitão, quando sai para
o mar, personifica o herói mítico Aori. “Veste os trajes que Aori usava, segundo o
mito; tem como ele o rosto enegrecido e, nos cabelos, um love semelhante àquele
que Aori retirou da cabeça de Iviri. Dança sobre a plataforma e abre os braços como
Aori abria suas asas... Disse me um pescador que quando ia apanhar peixes (com seu
arco) se tomava por Kivavia em pessoa. Não implorava o favor e a ajuda desse herói
mítico: identificava se com ele.”
O simbolismo dos precedentes míticos encontra-se igualmente em outras culturas
primitivas. A respeito dos karuk da Califórnia, J. P. Harrington escreve: “Tudo o que
o Karuk fazia, só o realizava porque os ikxareyavs, acreditava se, tinham dado o
exemplo disso nos tempos míticos. Esses ikxareyavs eram as pessoas que habitavam
a América antes da chegada dos índios. Os karuk modernos, não sabendo como
traduzir essa palavra, propõem traduções como ‘os príncipes’, ‘os chefes’, ‘os
anjos’... Só ficaram entre os karuk o tempo necessário para ensinar e pôr em
andamento todos os costumes, dizendo a cada vez: ‘Eis como fariam os humanos.’
Seus atos e palavras ainda hoje são contados e citados nas fórmulas mágicas dos
karuk.” A repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo: (1) por um
lado, ao imitar os deuses, o homem mantém se no sagrado e, conseqüentemente, na
realidade; (2) por outro lado, graças à reatualização ininterrupta dos gestos divinos
exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens
contribui para manter a santidade do mundo.

[Eliade, Mircea. O sagrado e o profano / Mircea Eliade ; [tradução Rogério Fernandes]. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. IN: Capítulo II, O tempo sagrado e os mitos.]

Um comentário:

  1. Muito bom, amigo! Também tenho um Blogue: https://vandersonfilosofo.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir