quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

«Esquecimento» e «Memória» na antiga Grécia [por Mircea Eliade]


       "A recordação é para aqueles que esqueceram", escreveu Plotino (Enéadas, 4, 6, 7 ss.). A doutrina é platônica. "Para aqueles que esqueceram, a rememoração é uma virtude; mas os perfeitos não perdem jamais a visão da verdade e não têm necessidade de rememorar" (Fedro 250). Existe, portanto, uma diferença entre memória (mneme) e recordação (anamnesis). Os deuses de que fala Buda no Dîghanykâya, e que caíram dos céus quando sua memória se perturbou, reencarnaram-se como homens. Alguns deles praticaram a ascese e a meditação e, graças à sua disciplina iogue, conseguiram recordar-se de suas existências anteriores. Uma memória perfeita é superior, portanto, à faculdade de rememorar. De uma maneira ou de outra, a recordação implica um "esquecimento" e este, como vimos, equivale, na Índia, à ignorância, à escravidão ( = cativeiro) e à morte.


Encontramos uma situação similar na Grécia. Não nos propomos a apresentar aqui todos os fatos referentes ao "esquecimento" e à anamnesis nas crenças e especulações gregas. Traçaremos apenas as diferentes modificações da "mitologia da memória e do esquecimento", cuja função capital nas sociedades proto-agrícolas foi examinada no capítulo precedente. Na índia como na Grécia, crenças mais ou menos análogas às dos proto-a-gricultores foram analisadas, reinterpretadas e revalorizadas pelos poetas, os contemplativos e os primeiros filósofos. O que equivale a dizer que, na Índia e na Grécia, não lidamos mais unicamente com comportamentos religiosos e expressões mitológicas, mas
sobretudo com rudimentos de psicologia e de metafísica. Não obstante, há continuidade entre as crenças "populares" e as especulações "filosóficas". É sobretudo essa continuidade que nos interessa.


A deusa Mnemósine, personificação da "Memória", irmã de Cronos e de Oceanos, é a mãe das Musas. Ela é onisciente: segundo Hesíodo (Teogonia, 32, 38), ela sabe "tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será". Quando o poeta é possuído pelas Musas, ele sorve diretamente da ciência de Mnemósine, isto é, sobretudo do conhecimento das "origens", dos "primórdios", das genealogias. "As Musas cantam, com efeito, a começar do princípio — ex arkhés (Teogonia, 45, 115) — o aparecimento do mundo, a gênese dos deuses, o nascimento da humanidade. O passado assim revelado é mais que o antecedente do presente: é a sua fonte. Ao remontar a ele, a rememoração procura, não situar os eventos
num quadro temporal, mas atingir as profundezas do ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual proveio o cosmo, e que permite compreender o devir em sua totalidade".(1)


Graças à memória primordial que ele é capaz de recuperar, o poeta inspirado pelas Musas tem acesso às realidades originais. Essas realidades manifestaram-se nos Tempos míticos do princípio e constituem o fundamento deste Mundo. Mas, justamente por terem aparecido ab origine, essas realidades não são mais perceptíveis na experiência corrente. J. P. Vernant com razão compara a inspiração do poeta à "evocação" de um morto do mundo infernal ou a um descensus ad inferos empreendido por um vivo a fim de aprender o que ele
quer conhecer. "O privilégio que Mnemósine confere ao aedo é o de um contato com o outro mundo, a possibilidade de nele entrar e dele sair livremente. O passado surge corno uma dimensão do além".(2)


Eis por que, na medida em que é "esquecido", o "passado" — histórico ou primordial — é homologado à morte. A fonte de Letes, o "esquecimento", faz parte integrante do reino da Morte. Os defuntos são aqueles que perderam a memória. Ao contrário, alguns privilegiados, como Tirésias ou Anfiarau, conservaram sua memória após o trespasse. A fim de tornar seu filho Etalide imortal, Hermes lhe concede "uma memória inalterável". Como escreveu
Apolônio de Rodes, "mesmo quando ele atravessou o Aqueronte, o esquecimento não submergiu sua alma; e, embora ele habite ora o reino das sombras, ora o da luz solar, sempre conserva a lembrança do que viu".(3) 

Mas a "mitologia da Memória e do Esquecimento" se modifica, enriquecendo-se de uma significação escatológica, quando se esboça uma doutrina da transmigração. O importante é conhecer, não mais o passado primordial, mas a série de existências pessoais anteriores. A função do Letes é invertida: suas águas não mais acolhem a alma que acaba de deixar o corpo, com o fim de fazê-la esquecer a existência terrestre. Ao contrário, o Letes apaga a lembrança do mundo celeste na alma que volta à terra para reencarnar-se. O "esquecimento" não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber da fonte do Letes ("repleta de esquecimento e de maldade", como a descreve Platão, Fedro, 248 c), reencarna-se e é novamente projetada no ciclo do vir-a-ser. Nas lâminas de ouro usadas pelos iniciados da irmandade órfico-pitagórica, prescreve-se à alma que não se aproxime da fonte do Letes pelo caminho da esquerda, mas que tome, pela direita, o caminho onde encontrará a nascente que sai do lago de Mnemósine. Aconselha-se à alma que implore aos guardiões da nascente: "Dai-me ràpidamente da água fresca que flui
do lago da Memória". "E eles mesmos te darão de beber da santa fonte e, depois, entre os outros heróis, tu serás o mestre". (4)

Pitágoras, Empédocles e outros acreditavam na metempsicose e afirmavam poder recordar-se de suas existências anteriores. "Vagabundo exilado da divina morada" — apresentava-se Empédocles — "já fui outrora homem e mulher, um arbusto e uma ave, e um peixe mudo no mar" (Purificações, fr. 117). E dizia ainda: "Estou livre para sempre da morte" (ibid., fr. 112). Referindo-se a Pitágoras, Empédocles descreve-o como "um homem de conhecimentos
extraordinários", pois "para onde quer que dirigisse todo o poder de seu espírito, via facilmente o que havia sido em dez, vinte existências humanas" (ibid., fr. 129). Por outro lado, o exercício e o cultivo da memória desempenhavam um papel importante nas irmandades pitagóricas (Diodoro, X, 5; Jâmblico, Vita Pyth. 78 ss.). Esse treinamento lembra a técnica iogue de "voltar atrás" que estudamos no capítulo V. Acrescentamos que os xamãs afirmam recordar-se de suas existências anteriores, (5) o que indica o arcaísmo da prática.






(1) J. P. Vernant, "Aspects mythiques de la mémoire en Grece". Journal de Psychologie (1959), pág. 7. Cf. também Ananda K. Coomaraswamy, "Recollection, Indian and Platonic", Supplement to theJournal of the American Oriental Society, n°.3 (abril-junho 1944).

(2) J. P. Vernant, op. cit., pág. 8

(3) Argonautica I, 643, citado por Vernant, op. cit., pág. 10.

(4) Lâminas de Petelia e de Eleuthernae. Sôbre as lâminas "61.- ficas", cf. Jane Harrison, Prolegomena to the Study of Greek Religion (Cambridge, 1903), págs. 573 ss; F. Cumont, Lux perpetua (Paris, 1949), págs. 248, 406; W. K. C. Guthrie. Orpheus and the Greek Religion (Londres, 1935; 2ª. ed., 1952), págs. 171 ss.

(5) Cf. M. Eliade, Mythes, rêves et mystères, pág. 21. Sôbre as existências anteriores de Pitágoras, cf. os textos reunidos por E. Rodhe, Psyche, trad. por W. B. H illis (Nova York, 1925), págs. 598 ss.


[IN: Mito e Realidade. Capítulo VII. MITOLOGIA DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO]

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Considerações sobre antigos historiadores. [Por Arthur Schopenhauer]






Os antigos historiadores tornaram-se tão grandiosos porque eram poetas. Quando os dados lhes faltavam, complementavam-nos de forma correta a partir da Ideia, como por exemplo nos discursos dos heróis, sim, em seus diálogos sua maneira de tratar o assunto aproxima-se da poesia épica.
Mediante esse complemento a partir da Ideia, suas exposições alcançam unidade perfeita e plena coesão interior; com isso, mesmo quando a verdade exterior não lhes é acessível, ou até é falseada, eles salvam a verdade interior, ou seja, a verdade poética, a verdade da Ideia de humanidade. Eu disse que a história está para a poesia como a pintura de retratos está para a pintura histórica; agora podemos aqui usar a já mencionada regra de Winkelmann para o retrato(1), quando ele afirma que o retrato deve ser o ideal do indivíduo. Justamente isso realizaram os antigos historiadores em suas descrições. Eles expuseram de tal maneira o dado, o particular, o individual, que o lado da Ideia de humanidade que ao se exprimia entrou em cena clara e puramente. Os historiadores modernos raramente seguem os passos dos antigos, e muitas vezes vale para aquele o que Goethe diz, ou seja, eles oferecem


Ein Kehrichtfaß und eine Rumpelkammer 
Und höchstens eine Haupt- und Staatsaktion


(Um barril de entulhos e inutilidades / E quando muito uma ação principal e de estado)

A história, enquanto tal, possui seu grande valor duradouro e inquestionável, tendo-se em vista o conhecimento do encadeamento dos fenômenos do mundo humano. Para quem, entretanto, pretende conhecer a humanidade em seu íntimo, em todos os fenômenos e desenvolvimentos de sua essência idêntica, portanto conforme sua Ideia, para esse as obras dos poetas grandiosos e autênticos apresentarão uma imagem muito mais fiel e clara do que já o conseguiram os historiadores; pois, entre estes, até mesmo os melhores, como poetas, não são por muito tempo os primeiros e também não têm mãos livres. Ainda uma comparação da relação do poeta com o historiador: o mero e simples historiador que trabalha apenas de acordo com os dados se assemelha a alguém que, sem conhecimento algum da Matemática, investiga por medições as proporções das figuras que acabou de encontrar; suas especificações descobertas empiricamente têm de, por conseguinte, conter todas as incorreções próprias às figuras assinaladas. O poeta, ao contrário, assemelha-se ao matemático, que constrói a priori aquelas proporções numa intuição pura, não empírica, estabelecendo-as, portanto, não como elas se encontram efetivamente nas figuras assinaladas, mas como são na ideia(2) e que o desenho deve tornar sensível.



1 - Cap. 14, "Do caráter"
2 - Ideia no sentido de pensamento.


(Cap. XVI. IN: Metafísica do Belo.)


Miley Cyrus, uma feminista exemplar.







circulo atenea
Miley Cyrus declarou-se mais de uma vez feminista, explorando sua obsessão pela vulgarização e fortes apelos sexuais.
Essa que diz ser a feminista mais famosa da actualidade, poderia ser classificada como atriz pornô e deixar o termo cantora para as mulheres que verdadeiramente cantem ou saibam cantar, ao menos.
twerk
Miley Cyrus, em entrevista a BBC, disse: "Eu me sinto como uma das maiores feminista do mundo, porque eu digo a mulheres que não tenham medo de nada". Ela continuou: "Na verdade, eu não vou por aí com a língua para fora o dia todo e vestido como um urso. " Sim, claro. Ela precisa de holofotes para começar sua atuação. O circo de horrores mais popular de nossa era, ou circo feminista, como queiram, espera ensinar como se portar usando os mais diversos meios midiáticos. 
circulo atenea
Com 21 anos, a criatura do sexo feminino é paga para cantar e propagar aos quatro cantos do mundo suas degradações. Uma prostituta de luxo, diretamente dos bordéis para o mundo da fama. É o exemplo de milhões de adolescentes. Uma sextremista doentia (perdoem-me a redundância) que propõe um modelo de mulher pós-moderno.
Ela fuma maconha em palco, pula, põe-se a guinchar e recebe por isso. 
circulo atenea
Miley tinha convidado crianças para participar de seus shows considerando-os " educativos". Educação onde mostra desempenho com garotos de programa utilizando trajes típicos de prostitutas e realizando movimentos provocantes e coreografias "explosivas". Será que ela educaria as crianças para o quê?
Um dos momentos mais "educacionais" foi quando a jovem interpretou a canção Party in the EUA, momento qual, ajoelhada diante de um homem usando uma máscara do ex-presidente Bill Clinton, fingiu fazer sexo oral.
circulo atenea

Propomos um boicote, essas características da feminista não devem ser exemplos aos nossos filhos e filhas. Honra, dignidade e inteligência devem prevalecer na educação que lhes damos.
"Um dia, quando a minha filha adolescente chegou ao quarto dela cantando e com cartazes dessa cantora que ela gostava, eu expliquei o que era cada um, e questionei se ela seguiria esse modelo ou se prevaleceria sua inteligência. Ela começou a retirar todos esses cartazes. Você deve pensar que os seus ensinamentos e, claro, o de seu marido devem educá-los. A educação deve ser reforçada por ambos os pais, não podemos ter opiniões diferentes." Carmen Martín (Círculo Atenea)

Armais vossos filhos contra a degeneração. Devem ser soldados em um mundo em ruínas, permanecendo de pé.

Texto original por Carmen Martín (Círculo Atenea)
Reorganizado e traduzido por Dulce et Decorum.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

«Arte moderna»: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira. [Por Monteiro Lobato.]






Duas espécies de artistas


     Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêm as coisas e em conseqüência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestre.

     Quem trilha esta senda, se tem gênio é Praxiteles na Grecia, é Rafael na Itália, é Reynolds na Inglaterra, é Dürer na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredoiros.

     A outra espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.


Paranóia ou mistificação?


     Embora se dêem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como a paranóia e a mistificação.

     De há muito que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios.

     A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária mas não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.

críticos aproveitam a vasa para «épater le bourgeois» (chocar o burguês). Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavreado técnico, descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista; a conclusão é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo genial de iniciados nas transcedências sublimes duma Estética Superior.

     No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor. É mister que o público se ria de ambos.

     «Arte moderna»: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira.

     Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer, deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso virtuose do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos femininos em botão.

     Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da «ponta-seca», que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade.





Trechos de "Paranóia ou mistificação? A propósito da Exposição Malfatti" 

Onna-bugeisha: a mulher samurai.

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Costumeiramente, as Onna-bugeishas utilizavam a Nagitana como arma principal, dado o fato que são práticas para utilizar-se a média-larga distância do oponente, especialmente pensando no fato que, estando em casa, seria rápido de deter alguém que viesse atacar seu lar a cavalo. Mas elas também utilizavam arco e flecha.
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A nagitana, aliás, é geralmente associada às mulheres.
tomoe e.jpg Hangaku e Tomoe Gozen foram as mais destacadas mulheres a usar suas nagitanas com a destreza de um bushi, outro termo usado para designar samurai.
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O termo onna-musha também as denominava. E é interessante notar que mesmo sendo ferozes guerreiras elas vestiam sempre quimonos luxuosos de seda fina e coloridos, estavam sempre maquiadas e com os cabelos devidamente penteados. Havia todo um cuidado para que não deixassem de lado suas qualidades femininas.
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A mulher bushi não possuía função pública. Para a classe guerreira, a função primordial da mulher era o cuidado com os filhos. O que não significava que quando mulheres abandonavam a «fragilidade do sexo em busca do ser guerreiro» elas eram mal vistas. Pelo contrário, eram mulheres acima das outras caso desse espaço ao treinamento para o bushido.
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«o homem e a mulher não devem ser mais que uma só carne» diz o livro Bushido, o código do samurai. Assim sendo, a viúva de um Samurai tornar-se-ia ela mesmo uma praticante da arte de ser um soldado da aristocracia.



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Inventor ou mestre? Homero aos olhos de Ezra Pound.

«Nunca li meia página de Homero sem encontrar invenção melódica, isto é, invenção melódica que eu ainda não conhecia.» Ezra Pound


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Além de revisitar grandes clássicos da literatura para análise profunda e criação do seu ABC da literatura, Ezra Pound, poeta e crítico literário norte-americano, reconfigura temas da literatura clássica e medieval em sua poesia. Além de Homero, Dante, os poetas provençais, há todo um cuidado para fitar os grandes literatos, para traçar um caminho e uma viagem sem esquecer-se que o seu lar era a tradição literária.
A «épica sem enredo» que é a obra Cantos de Ezra Pound, como define Haroldo de Campos, criou no Canto I a representação de um Ulisses que participará de «uma viagem sem acção» ao submundo para falar com Tirésias. Ulisses 0020 www.templodeapolo.net.jpg
Pound traça ainda uma interessante relação intertextual com a própria tradução literária da obra homérica. Com o «Jaz em paz, Divus» refere-se ao scholar renascentista que "conheceu" em uma de suas primeiras viagens a Paris, Andreas Divus, quando teve contato com sua tradução da Odisseia, publicada em 1538, e é dessa versão que ele próprio traduziu ao seu canto 1 (C. R. Ludwig),observando que o protagonista de Odisseia sobrevive ao tempo, porém entre as metamorfoses que os idiomas e as traduções promovem.
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«Nunca li meia página de Homero sem encontrar invenção melódica, isto é, invenção melódica que eu ainda não conhecia.»
Em uma das três modalidades da poesia está a melopeia: quando a poesia está impregnada de musicalidade. Assim, obviamente a obra homérica é molde para a poesia de todos os tempos. Para Pound, quando trata-se de escritos literários, serão identificados: inventores; mestres; diluidores; bons escritores sem qualidades salientes; beletristas e lançadores de moda.
INVENTOR E MESTRE
1. Inventores Homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo / 2. Mestres Homens que combinaram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores.// Dado o fato de que há tanto se vive a interrogação se Homero foi um só homem, se eram dois bardos (diferentes para cada uma das obras atribuídas ao poeta grego) ou se era um conjunto de homens, fica difícil compreender se o escritor de Odisseia e Ilíada seria um inventor ou um mestre. Talvez tenha conseguido a glória de ser ambos ao mesmo tempo.
O importante é perceber que para Ezra Pound «Enquanto o leitor não conhecer as duas primeiras categorias (inventores e mestres), será incapaz de distinguir as árvores da floresta. Ele pode saber de que gosta. Ele pode ser um verdadeiro amador de livros, com uma grande biblioteca de volumes magnificamente impressos, nas mais caras e vistosas encadernações, mas nunca será capaz de ordenar o seu conhecimento ou de apreciar o valor de um livro em relação a outros, e se sentirá ainda mais confuso e menos capaz de formular um juízo sobre um livro cujo autor está "rompendo com as convenções" do que sobre um livro de oitenta ou cem anos atrás.»
Obviamente não foi Homero sua única base literária, nem apenas Dante. Pensar isso é como imaginar o Partenon com apenas um pilar. O monumento literário do escritor de Os cantos é nada mais que uma sucessão de referências ad infinitum.



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Do sublime ao ridículo: um passo apenas. [Por Evita Perón.]




XLVIII



Confesso que no dia em que se abriu diante de mim a possibilidade do "caminho feminista", experimentei um pouco de mêdo. Que poderia fazer eu, mulher do povo, onde outras mulheres, mais preparadas, tinham fracassado fragorosamente? Cair no ridículo? Engrossar a falange de mulheres ressentidas com a mulher e com o homem, como tem acontecido com inúmeras líderes feministas?

Por outra parte, não era solteira, velha nem desgraciosa, para ocupar um lugar assim, que, desde que se tem memória, pertence por direito próprio, desde as feministas inglêsas clássicas, até às destas latitudes,
a mulheres dêsse tipo, mulheres cuja primeira vocação foi, decerto, a de serem homens. Tais eram, tais saíram os movimentos por elas orientados!

Primava nelas, antes o despeito de não terem nascido homens, do que o orgulho de se sentirem mulheres.
Acreditavam ser uma injustiça haverem nascido mulheres. Ressentidas com as mulheres, porque não queriam deixar de o ser, e ressentidas com os homens porque não lhes consentiam ser como êles, as "feministas", a imensa maioria das feministas do mundo, até onde as conheço, constituíram um raro espécime de mulher que não me pareceu nunca totalmente mulher! De modo algum aceitava parecer-me com elas.

O General deu-me a explicação de que precisava: "Então não vês que essas mulheres erraram o caminho? Querem ser homens. Tal como se eu, para salvar os trabalhadores, houvesse pretendido fazer deles oligarcas. Teria ficado sem operários! E mais, não teria conseguido com isso melhorar em nada a oligarquia. Não vês que essa classe de "feministas" renega a mulher? Algumas nem sequer se pintam. Qual! Isso é coisa de mulheres! Aspiram a masculinizar-se. E se do que o mundo necessita é de um movimento político e social feminino, que poderá lucrar com mulheres que pretendem salvá-lo, imitando os homens? Nós já fizemos muitas atrapalhações, tantas, que não sei ainda se o mundo terá consêrto. Talvez a mulher possa salvá-lo, desde que não nos imite..."

Tenho sempre presente à memória aquela lição do General.
Nunca, como então, parece-me tão claro e luminoso o seu pensamento.
Era exatamente isso o que eu sentia.
Sentia que o movimento feminino no meu país e no mundo inteiro estava fadado a cumprir uma missão sublime. E o mau era que tudo quanto conhecia acêrca de feminismo se me antolhava ridículo. Isso porque feminismo, liderado não por mulheres mas por marimachos que aspirando a ser homens, nada tinham de mulheres, dera o passo que vai do sublime ao ridículo!
O passo que eu tratei de não dar jamais!



IN: A razão de minha vida. 

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

O Declínio da Maternidade

Mãe acusada de esfaquear o filho até à morte numa discussão sobre gelado.
“A fiança foi fixada em $750.000 para mãe acusada de matar o seu filho adolescente numa discussão sobre gelado.
Robin Erwin, de 31 anos, foi acusada de homicídio de primeiro grau por esfaquear o seu filho até à morte, Diontae Erwin, de 17 anos, no dia 7 de Setembro, relata a polícia de Sauk Village.
O Juíz Darron Bowden fixou a fiança em $750.000 quando Erwin apareceu na segunda-feira no tribunal de Markham, de acordo com o Escritório do Procurador de Cook County.
Diontae Erwin foi esfaqueado no seu lar, de acordo com o médico legista de Lake County (Indiana). Foi pronunciado morto às 12:41 (pm) no Franciscan St Margareth Health, em Dyer, Indiana. Morreu de uma facada no peito e a sua morte foi considerada como homicídio.
Testemunhas afirmaram que mãe e filho estavam a discutir sobre gelados às 12:15 (pm) do dia 7 de Setembro quando o esfaqueamento ocorreu.
Robin Erwin telefonou à polícia e afirmou que o seu filho foi contra a faca, uma afirmação que o médico legista disse ser inconsistente com as descobertas médicas.
Larry Gray, de 21 anos, também foi acusado de uso ilegal de arma de criminoso e por quebrar a liberdade condicional, segundo a polícia. Agentes também encontraram 130 gramas de canábis na casa.
Erwin está agendada para aparecer em tribunal outra vez no dia 30 de Setembro, segundo os promotores.”
Esta notícia, embora seja recente, não traz nenhuma novidade. Todos as semanas – se não mesmo todos os dias – chega-nos uma notícia de uma mãe que assassinou a sangue frio a sua criança, por meras trivialidades, como neste caso, cujo crime decorreu por algo tão simples como um gelado!
Estas notícias são a nova realidade, a nova era do Homem. Todos os dias, a toda a hora, lemos sobre o profundo declínio da sociedade moderna. Porém, haveria sempre algo que, supostamente, poderíamos confiar existir e ser totalmente sagrado: os laços de sangue, de família. Não somos educados desde crianças que o amor de uma mãe para a sua criança, o seu sangue, não transcende noções materialistas? Não crescemos nós a acreditar que as nossas mães, por nós, pelo nosso bem, fariam mexer a terra e o céu? Não seria a família (o sangue) a derradeira fortaleza, o santuário onde nos poderíamos refugiar dessa sociedade decadente e tantas vezes perigosa? Não mais.
Essa é a novidade dessas notícias: aqueles que lutam pela existência desses valores estão a perder. O sangue é um valor sem sentido, sem significado, de tal forma que criamos mães, essas criaturas divinas que deveriam zelar pelo bem da sua prole, amá-las acima de tudo e educá-las, criamos mães que nada mais são que monstros assassinos sem valor nenhum. E onde irão as crianças procurar conforto, se não podem confiar nem na própria mãe? Como poderão elas crescer com valores e honra, quando em casa (o verdadeiro sítio onde tais valores devem ser aprendidos, e não na escola como tantos teimam afirmar) as suas figuras maternais (e paternais também) mostram uma total ausência desses mesmos valores?
Uma era em que a frase “E se fosse com seu filho?” se torna mero cliché sem valor, é também uma era sem moral, honra e valor algum.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Traços da Herança Ibérica na Música Brasileira

Por Makely Ka.

Os mouros, também chamados de sarracenos ou bérberes, ocuparam a península ibérica por oitocentos anos. Essa presença ainda é marcante principalmente no sul de Portugal e da Espanha.

Os ecos dessa ocupação chegaram ao Brasil com as primeiras caravelas, dois séculos após a expulsão dos mouros da região portuguesa do Algarve e foram se sedimentando como formações rochosas vão se sobrepondo em camadas geológicas. Encontraram terreno fértil no Nordeste, principalmente na aridez do sertão, representação secular do deserto, onde as condições de vida assumem aspectos que vão se reproduzir em diversas partes do mundo: o convívio com a uma natureza implacável, a falta de água, a lida com o gado, a manifestação de uma religiosidade aguda. Esse dado mesológico importa na medida em que é determinante para a reprodução de um modo de vida que se adapta ao meio, que se adequa às condições adversas usando tecnologias milenares de sobrevivência em ambientes hostis. Desse medium brota uma cultura endêmica, que não arrebata pela graça e pela delicadeza, mas pela força e pelo vigor, como gosta de dizer Ariano Suassuna.
O aboio nordestino, canto dos vaqueiros para tanger o gado, para chamar e acalmar, assentado em vogais e melismas, monocórdio, tem indíscutivel origem oriental. Segundo Câmara Cascudo essa prática teria chegado ao Brasil através de escravos mouros vindos da Ilha da Madeira. Diz ainda: “entoado numa série de interjeições semelhantes a vocalises, tendo bastante acentuado o estilo oriental, principalmente na Neuma, a extraordinária semelhança com a ‘mourisca, donde parece ter saído”. O aboio tem presença marcante na música popular contemporânea de matriz nordestina, desde Luiz Gonzaga até Lenine.
Outro elemento árabe onipresente na música nordestina e brasileira de uma forma geral que chegou até nós via Península Ibérica é o pandeiro. Redondo ou retangular, geralmente tocado por mulheres, o pandeiro, adufe ou tamboril é imprescindível nos cantos e danças mouros. Pero Vaz de Caminha já fazia referência a esses instrumentos na sua “Carta do Achamento” ao rei de Portugal em 1500, tocados pelos marinheiros ao chegarem nas praias de Porto Seguro e encontrarem os primeiros indígenas.
Na literatura, um dos elementos mais representativos dessa herança é o romance, que aqui se transformou, ganhou novos metros, outros acentos, mas manteve intacto o sabor oriental, a fragrância peculiar do almíscar.
Um dos motivos mais populares, tanto na península como aqui é o romance da Donzela Teodora. Nele, independente da forma encontrada, seja em prosa ou verso, nas mais variadas versões, o tema é sempre o mesmo: a exaltação da beleza e da sabedoria da mulher astuciosa, prodígio de inteligência e sensatez. Inevitável lembrar-se de Sheherazade que seduz o sultão por mil e uma noites com astúcia e beleza.
Vamos encontrar essa mesma donzela entre as canções do trovador contemporâneo Elomar. O compositor baiano se apropria inclusive de versos inteiros do romance original, ou de sua versão mais conhecida entre nós.
Na versão sertaneja mais comum no Brasil há os seguintes versos:
Donzela o que é velhice?
Respondeu com brevidade:
É vestidura de dores
É a mãe da mocidade,
O que mais aborrecemos?
Respondeu: é a idade.
Elomar por sua vez recria esses versos na sua Donzela Tiadora, mantendo intacta todavia a metáfora:
Beleza dos amores
E qui da vilhilice
Vistidura de dores
Na eterna mininice
Na obra de Elomar, ambientada nesse interregno, na zona de transição entre o cerrado mineiro e a caatinga do sertão baiano, o que impressiona nesse contexto específico é o grau de elaboração e unidade alcançados a partir da elaboração criativa, e muitas vezes intuitiva, desses fragmentos dispersos no espaço e no tempo. Ele instaura uma realidade, recria esse mundo medieval no semi-árido brasileiro, resignificando os espaços, os objetos, os homens e os animais e imputando um sentido transcendente à vida e morte desses sertanejos. Elomar constrói portanto não só a ponte transatlântica mas também aquela temporal, unindo cinco séculos de história oral. Estabelece ainda outros dois vínculos importantes; um entre a poesia e a música, recuperando o princípio original do romance medieval, criado para ser cantado; de outro lado aproxima a canção popular da música erudita, escrevendo para formações camerísticas e mesmo orquestras utilizando formas consagradas como óperas, oratórios, cantatas, árias e antífonas. Chama atenção ainda o fato de que todo esse universo seja elaborado a partir de um instrumento que descende diretamente dos alaúdes árabes, um violão virtuoso que incorpora elementos da melhor tradição espanhola, com muitos arpejos e ligaduras, mas principalmente com a uma harmonia polifônica, que conduz e baliza a melodia, pagando tributo à melhor escola – desde Villa-Lobos a Dilermando, passando por Canhoto e Baden – de um instrumento tão bem ambientado no Brasil. O violão de Elomar tem ainda algo da viola caipira e, apesar de usar sempre uma afinação convencional (mi/lá/ré/sol/si/mi), emula a sonoridade modal das violas que utilizam afinação aberta.
As transformações pelas quais o país passou desde o final do século XIX, com o fim da escravidão, o êxodo rural e o inevitável processo de urbanização com a conseqüente perda de importância no imaginário social do universo simbólico agrário, gerou um gradativo esquecimento, ou hibernação desses elementos herdados dos descobridores portugueses. A urbanização trouxe hábitos novos, importados de França num primeiro momento e, mais tardiamente, dos Estados Unidos como ensina Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Veio acelerar ainda mais esse processo e confirmar o vaticínio da derrocada do ambiente rural como espaço autônomo e hegemônico o advento dos meios de comunicação de massa, com o rádio no início do século XX, e a televisão na segunda metade desse mesmo século, ambos amparados numa dimensão frenética de transformação que encontrou no discurso social-desenvolvimentista o argumento necessário para operar uma ruptura entre progresso e tradição.
Importante esclarecer todavia que não estou falando aqui da influência árabe no Brasil pós-migração de Sírios e Libaneses nos séculos XIX e XX. Essa é mais presente no Sudeste, muitas vezes confundidos com turcos, os sírio-libaneses tem uma importância crucial na cultura brasileira, mas não é o foco aqui. Da mesma forma que há uma influência da cultura árabe nos séculos XVII e XVIII através da presença na Bahia dos escravos convertidos mulçumanos, os Malês. A herança em questão aqui portanto não veio diretamente das arábias, pois ela passa necessariamente pelo filtro da península, pela decantação da cultura árabe após séculos de convívio com os povos ibéricos.
No sertão profundo sobrevive, ainda hoje, ecos desse universo paralelo, que vingou sob condições precárias, muitas vezes marginalizados e esquecidos, mas incorporando aqui e ali elementos novos, como sempre aconteceu com as tradições orais. Ainda são encenados, em muitas comunidades do interior do país, os autos da batalha entre Mouros e Cristãos, as Cheganças, com cavaleiros e cavalos enfeitados, empunhando espadas, cantando e guerreando até a derrota dos mouros infiéis, por fim convertidos e batizados na fé cristã. Mas esses elementos são sobretudo difusos, fragmentados. Encontra-se aqui e ali uma memória ainda tenaz, como era a de Dona Militana, no Rio Grande do Norte, com seus romances medievais aprendidos na linha direta da transmissão oral familiar.
Essa influência efetivamente se estende, em diferentes graus de presença e nas várias formas, desde o nordeste setentrional até o norte e noroeste de Minas, e pode ser percebida tanto nas melodias modais tradicionais das lavadeiras do Vale do Jequitinhonha quanto nos folguedos, nas brincadeiras, folias e reizados que ainda são encontrados em toda essa região. Da Tirana da Rosa ao Calix Bento, que podem ser ouvidos desde o Minho até a Baixa, ou da nascente das Velhas até a foz do Velho Chico. Pode ser percebida ainda no sotaque, no modo de falar, principalmente na prosódia dos habitantes do interior mais recôndito do sertão brasileiro, onde o acento permaneceu e trás os ventos da oralidade, resquícios de uma língua tonal, num tempo imemorial onde as pessoas não falavam simplesmente, mas cantavam.

Mito, modelo exemplar. [ por Mircea Eliade]





O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que
teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale
a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são
deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o
homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é pois a
história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os
Seres divinos fizeram no começo do Tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se
passou ab origine. Uma vez “dito”, quer dizer, revelado, o mito torna-se verdade
apodítica: funda a verdade absoluta. “É assim porque foi dito que é assim”, declaram
os esquimós netsilik a fim de justificar a validade de sua história sagrada e suas
tradições religiosas. O mito proclama a aparição de uma nova “situação” cósmica ou
de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma “criação”:
conta se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser É por isso que o mito é
solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, do que se
manifestou plenamente.
É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por
excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano não participa do Ser, visto que
o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar.
Conforme não tardaremos a ver, o trabalho agrícola é um ritual revelado pelos
deuses ou pelos Heróis civilizadores. É por isso que constitui um ato real e
significativo. Por sua vez, o trabalho agrícola numa sociedade dessacralizada tornou-se
um ato profano, justificado unicamente pelo proveito econômico que proporciona.
Trabalha se a terra com o objetivo de explorá-la: procura-se o ganho e a
alimentação. Destituído de simbolismo religioso, o trabalho agrícola torna-se, ao
mesmo tempo, “opaco” e extenuante: não revela significado algum, não permite
nenhuma “abertura” para o universal, para o mundo do espírito. Nenhum deus,
nenhum herói civilizador jamais revelou um ato profano. Tudo quanto os deuses ou
os antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua
atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por conseqüência, participa do
Ser. Em contrapartida, o que os homens fazem por própria iniciativa, o que fazem
sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é pois uma atividade vã e ilusória,
enfim, irreal. Quanto mais o homem é religioso tanto mais dispõe de modelos
exemplares para seus comportamentos e ações. Em outras palavras, quanto mais é
religioso tanto mais se insere no real e menos se arrisca a perder se em ações não
exemplares, “subjetivas” e, em resumo, aberrantes.
Este é um aspecto do mito que convém sublinhar: o mito revela a sacralidade
absoluta porque relata a atividade criadora dos deuses, desvenda a sacralidade da
obra deles. Em outras palavras, o mito descreve as diversas e às vezes dramáticas
irrupções do sagrado do mundo. Por esta razão, entre muitos primitivos, os mitos
não podem ser recitados indiferentemente em qualquer lugar e época, mas apenas
durante as estações ritualmente mais ricas (outono, inverno) ou no intervalo das
cerimônias religiosas – numa palavra, num lapso de tempo sagrado. É a irrupção do
sagrado no mundo, irrupção contada pelo mito, que funda realmente o mundo. Cada
mito mostra como uma realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o
Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, uma instituição
humana. Narrando como vieram à existência as coisas, o homens explica as e
responde indiretamente a uma outra questão: por que elas vieram à existência? O
“por que” insere se sempre no “como”. E isto pela simples razão de que, ao se contar
Como uma coisa nasceu, revela se a irrupção do sagrado no inundo, causa última de
toda existência real.
Por outro lado, sendo toda criação uma obra divina, e portanto irrupção do sagrado,
representa igualmente uma irrupção de energia criadora no Mundo. Toda criação
brota de uma plenitude. Os deuses criam por um excesso de poder, por um
transbordar de energia. A criação faz se por uni acréscimo de substância ontológica.
É por isso que o mito que conta essa ontofania sagrada, a manifestação vitoriosa de
uma plenitude de ser, torna-se o modelo exemplar de todas as atividades humanas:
só ele revela o real, o superabundante, o eficaz. “Devemos fazer o que os deuses
fizeram no começo”, afirma um texto indiano (Shatapatha Brâhmana, VII, 2, 1, 4). –
Assim fizeram os deuses, assim fazem os homens”, acrescenta Taittiriya Br. (1, 5, 9,
4). A função mais importante do mito é, pois, “fixar” os modelos exemplares de
todos os ritos e de todas as atividades humanas significativas: alimentação,
sexualidade, trabalho, educação etc. Comportando se como ser humano plenamente
responsável, o homem imita os gestos exemplares dos deuses, repete as ações deles,
quer se trate de uma simples função fisiológica, como a alimentação, quer de uma
atividade social, econômica, cultural, militar etc.
Na Nova Guiné, numerosos mitos falam de longas viagens pelo mar, fornecendo
assim “modelos aos navegadores atuais”, bem como modelos para todas as outras
atividades, “quer se trate de amor, de guerra, de pesca, de produção de chuva, ou do
que for... A narração fornece precedentes para os diferentes momentos da construção
de um barco, para os tabus sexuais que ela implica etc.” Um capitão, quando sai para
o mar, personifica o herói mítico Aori. “Veste os trajes que Aori usava, segundo o
mito; tem como ele o rosto enegrecido e, nos cabelos, um love semelhante àquele
que Aori retirou da cabeça de Iviri. Dança sobre a plataforma e abre os braços como
Aori abria suas asas... Disse me um pescador que quando ia apanhar peixes (com seu
arco) se tomava por Kivavia em pessoa. Não implorava o favor e a ajuda desse herói
mítico: identificava se com ele.”
O simbolismo dos precedentes míticos encontra-se igualmente em outras culturas
primitivas. A respeito dos karuk da Califórnia, J. P. Harrington escreve: “Tudo o que
o Karuk fazia, só o realizava porque os ikxareyavs, acreditava se, tinham dado o
exemplo disso nos tempos míticos. Esses ikxareyavs eram as pessoas que habitavam
a América antes da chegada dos índios. Os karuk modernos, não sabendo como
traduzir essa palavra, propõem traduções como ‘os príncipes’, ‘os chefes’, ‘os
anjos’... Só ficaram entre os karuk o tempo necessário para ensinar e pôr em
andamento todos os costumes, dizendo a cada vez: ‘Eis como fariam os humanos.’
Seus atos e palavras ainda hoje são contados e citados nas fórmulas mágicas dos
karuk.” A repetição fiel dos modelos divinos tem um resultado duplo: (1) por um
lado, ao imitar os deuses, o homem mantém se no sagrado e, conseqüentemente, na
realidade; (2) por outro lado, graças à reatualização ininterrupta dos gestos divinos
exemplares, o mundo é santificado. O comportamento religioso dos homens
contribui para manter a santidade do mundo.

[Eliade, Mircea. O sagrado e o profano / Mircea Eliade ; [tradução Rogério Fernandes]. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. IN: Capítulo II, O tempo sagrado e os mitos.]