"A recordação é para aqueles que esqueceram", escreveu Plotino (Enéadas, 4, 6, 7 ss.). A doutrina é platônica. "Para aqueles que esqueceram, a rememoração é uma virtude; mas os perfeitos não perdem jamais a visão da verdade e não têm necessidade de rememorar" (Fedro 250). Existe, portanto, uma diferença entre memória (mneme) e recordação (anamnesis). Os deuses de que fala Buda no Dîghanykâya, e que caíram dos céus quando sua memória se perturbou, reencarnaram-se como homens. Alguns deles praticaram a ascese e a meditação e, graças à sua disciplina iogue, conseguiram recordar-se de suas existências anteriores. Uma memória perfeita é superior, portanto, à faculdade de rememorar. De uma maneira ou de outra, a recordação implica um "esquecimento" e este, como vimos, equivale, na Índia, à ignorância, à escravidão ( = cativeiro) e à morte.
Encontramos uma situação similar na Grécia. Não nos propomos a apresentar aqui todos os fatos referentes ao "esquecimento" e à anamnesis nas crenças e especulações gregas. Traçaremos apenas as diferentes modificações da "mitologia da memória e do esquecimento", cuja função capital nas sociedades proto-agrícolas foi examinada no capítulo precedente. Na índia como na Grécia, crenças mais ou menos análogas às dos proto-a-gricultores foram analisadas, reinterpretadas e revalorizadas pelos poetas, os contemplativos e os primeiros filósofos. O que equivale a dizer que, na Índia e na Grécia, não lidamos mais unicamente com comportamentos religiosos e expressões mitológicas, mas
sobretudo com rudimentos de psicologia e de metafísica. Não obstante, há continuidade entre as crenças "populares" e as especulações "filosóficas". É sobretudo essa continuidade que nos interessa.
A deusa Mnemósine, personificação da "Memória", irmã de Cronos e de Oceanos, é a mãe das Musas. Ela é onisciente: segundo Hesíodo (Teogonia, 32, 38), ela sabe "tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será". Quando o poeta é possuído pelas Musas, ele sorve diretamente da ciência de Mnemósine, isto é, sobretudo do conhecimento das "origens", dos "primórdios", das genealogias. "As Musas cantam, com efeito, a começar do princípio — ex arkhés (Teogonia, 45, 115) — o aparecimento do mundo, a gênese dos deuses, o nascimento da humanidade. O passado assim revelado é mais que o antecedente do presente: é a sua fonte. Ao remontar a ele, a rememoração procura, não situar os eventos
num quadro temporal, mas atingir as profundezas do ser, descobrir o original, a realidade primordial da qual proveio o cosmo, e que permite compreender o devir em sua totalidade".(1)
Graças à memória primordial que ele é capaz de recuperar, o poeta inspirado pelas Musas tem acesso às realidades originais. Essas realidades manifestaram-se nos Tempos míticos do princípio e constituem o fundamento deste Mundo. Mas, justamente por terem aparecido ab origine, essas realidades não são mais perceptíveis na experiência corrente. J. P. Vernant com razão compara a inspiração do poeta à "evocação" de um morto do mundo infernal ou a um descensus ad inferos empreendido por um vivo a fim de aprender o que ele
quer conhecer. "O privilégio que Mnemósine confere ao aedo é o de um contato com o outro mundo, a possibilidade de nele entrar e dele sair livremente. O passado surge corno uma dimensão do além".(2)
Eis por que, na medida em que é "esquecido", o "passado" — histórico ou primordial — é homologado à morte. A fonte de Letes, o "esquecimento", faz parte integrante do reino da Morte. Os defuntos são aqueles que perderam a memória. Ao contrário, alguns privilegiados, como Tirésias ou Anfiarau, conservaram sua memória após o trespasse. A fim de tornar seu filho Etalide imortal, Hermes lhe concede "uma memória inalterável". Como escreveu
Apolônio de Rodes, "mesmo quando ele atravessou o Aqueronte, o esquecimento não submergiu sua alma; e, embora ele habite ora o reino das sombras, ora o da luz solar, sempre conserva a lembrança do que viu".(3)
Mas a "mitologia da Memória e do Esquecimento" se modifica, enriquecendo-se de uma significação escatológica, quando se esboça uma doutrina da transmigração. O importante é conhecer, não mais o passado primordial, mas a série de existências pessoais anteriores. A função do Letes é invertida: suas águas não mais acolhem a alma que acaba de deixar o corpo, com o fim de fazê-la esquecer a existência terrestre. Ao contrário, o Letes apaga a lembrança do mundo celeste na alma que volta à terra para reencarnar-se. O "esquecimento" não simboliza mais a morte, mas o retorno à vida. A alma que teve a imprudência de beber da fonte do Letes ("repleta de esquecimento e de maldade", como a descreve Platão, Fedro, 248 c), reencarna-se e é novamente projetada no ciclo do vir-a-ser. Nas lâminas de ouro usadas pelos iniciados da irmandade órfico-pitagórica, prescreve-se à alma que não se aproxime da fonte do Letes pelo caminho da esquerda, mas que tome, pela direita, o caminho onde encontrará a nascente que sai do lago de Mnemósine. Aconselha-se à alma que implore aos guardiões da nascente: "Dai-me ràpidamente da água fresca que flui
do lago da Memória". "E eles mesmos te darão de beber da santa fonte e, depois, entre os outros heróis, tu serás o mestre". (4)
Pitágoras, Empédocles e outros acreditavam na metempsicose e afirmavam poder recordar-se de suas existências anteriores. "Vagabundo exilado da divina morada" — apresentava-se Empédocles — "já fui outrora homem e mulher, um arbusto e uma ave, e um peixe mudo no mar" (Purificações, fr. 117). E dizia ainda: "Estou livre para sempre da morte" (ibid., fr. 112). Referindo-se a Pitágoras, Empédocles descreve-o como "um homem de conhecimentos
extraordinários", pois "para onde quer que dirigisse todo o poder de seu espírito, via facilmente o que havia sido em dez, vinte existências humanas" (ibid., fr. 129). Por outro lado, o exercício e o cultivo da memória desempenhavam um papel importante nas irmandades pitagóricas (Diodoro, X, 5; Jâmblico, Vita Pyth. 78 ss.). Esse treinamento lembra a técnica iogue de "voltar atrás" que estudamos no capítulo V. Acrescentamos que os xamãs afirmam recordar-se de suas existências anteriores, (5) o que indica o arcaísmo da prática.
(1) J. P. Vernant, "Aspects mythiques de la mémoire en Grece". Journal de Psychologie (1959), pág. 7. Cf. também Ananda K. Coomaraswamy, "Recollection, Indian and Platonic", Supplement to theJournal of the American Oriental Society, n°.3 (abril-junho 1944).
(2) J. P. Vernant, op. cit., pág. 8
(3) Argonautica I, 643, citado por Vernant, op. cit., pág. 10.
(4) Lâminas de Petelia e de Eleuthernae. Sôbre as lâminas "61.- ficas", cf. Jane Harrison, Prolegomena to the Study of Greek Religion (Cambridge, 1903), págs. 573 ss; F. Cumont, Lux perpetua (Paris, 1949), págs. 248, 406; W. K. C. Guthrie. Orpheus and the Greek Religion (Londres, 1935; 2ª. ed., 1952), págs. 171 ss.
(5) Cf. M. Eliade, Mythes, rêves et mystères, pág. 21. Sôbre as existências anteriores de Pitágoras, cf. os textos reunidos por E. Rodhe, Psyche, trad. por W. B. H illis (Nova York, 1925), págs. 598 ss.
[IN: Mito e Realidade. Capítulo VII. MITOLOGIA DA MEMÓRIA E DO ESQUECIMENTO]